A herança digital desafia o Direito Sucessório ao definir o destino de bens e dados online após a morte. Sem lei específica no Brasil, o STJ institui o inventariante digital.
A digitalização transformou a forma como as pessoas vivem, se comunicam e acumulam patrimônio. Essa nova realidade impõe ao Direito Sucessório o desafio de definir o destino de ativos digitais quando o titular morre, em meio à ausência de uma legislação específica sobre o tema no Brasil.
O chamado legado digital envolve tanto ativos de valor econômico (obras intelectuais, perfis monetizados, etc.) quanto dados pessoais e íntimos. A dificuldade está em determinar o que pode ser transmitido aos herdeiros e o que deve permanecer protegido pelo direito à privacidade. Diante desse vácuo normativo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 2.124.424/SP, deu um passo decisivo ao criar a figura do inventariante digital, profissional técnico nomeado pelo juiz para identificar e classificar o acervo digital do falecido.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, reconheceu que a sucessão digital exige equilíbrio entre dois valores fundamentais: o direito dos herdeiros ao patrimônio e a proteção post mortem da intimidade do falecido e de terceiros. O inventariante digital surge como um perito, responsável por separar os bens de natureza patrimonial (transmissíveis) daqueles existenciais, que devem ser resguardados.
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, por sua vez, defendeu uma interpretação mais tradicional, segundo a qual todos os bens, digitais ou não, se transmitiriam integralmente aos herdeiros, sem necessidade de filtragem. Contudo, prevaleceu o entendimento da relatora, mais adequado à era da informação e às novas dimensões da personalidade digital.
A decisão do STJ inaugura um marco relevante: a necessidade de adaptação dos procedimentos de inventário e do próprio conceito de herança. Escritórios e profissionais do Direito devem se preparar para lidar com essa nova categoria de bens, que exige tanto conhecimento jurídico quanto domínio técnico sobre segurança da informação. Também se impõe o planejamento preventivo: elaborar testamentos digitais, organizar senhas e utilizar mecanismos das plataformas é hoje parte essencial da gestão patrimonial.
Enquanto o legislador não cria normas específicas, a jurisprudência serve como guia. O Brasil ainda carece de uma estrutura legal comparável à de países que já regulamentaram o acesso de herdeiros a ativos digitais, como os Estados Unidos, com o RUFADAA [1]. Ainda assim, o precedente do STJ representa um avanço importante na proteção da privacidade e na consolidação de uma sucessão digital mais justa e transparente.
A herança digital, portanto, não se resume a uma questão tecnológica. Trata-se de repensar a aplicação de princípios clássicos em um ambiente virtual em constante mutação. O desafio é garantir que, mesmo após a morte, a dignidade humana continue a orientar o destino dos dados, memórias e valores que compõem o patrimônio digital.
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Por João Carlos Moraes
[1] “The Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act”, em tradução livre, “Lei Uniforme Revisada sobre o Acesso Fiduciário a Ativos Digitais”




