Veículo: Revista Apólice / Segs / Revista Hospitais Brasil /
Até esse meu vigésimo ano de atuação na área de Saúde Suplementar, já enfrentei inúmeros casos de divergências entre a obrigação legal, a previsão contratual, a orientação de auditoria médica especializada baseada em estudos científicos e literatura médica contra os pleitos dos pacientes que por muitas vezes são assegurados na via judicial sob a luz do Código de Defesa do Consumidor, na maioria das vezes sustentados pela alegação da autonomia do ato médico do profissional assistente que faz a prescrição ou indicação médica.
Nesse sentido foram sumuladas nos anos de 2012 e 2013 as decisões mais recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo e também de outros Estados, quando decidindo sobre matéria de Saúde Suplementar. Por se tratar de um assunto complexo e de extrema importância é que escolhi esse tema para debater, de forma extremamente sintética: a tal autonomia médica que garante diversos atendimentos prescritos, alguns absolutamente experimentais, sem registro pelos órgãos competentes no Brasil (ANVISA e ANS).
O tema merece cautela nos nossos Tribunais, notadamente quando há evidente dissonância entre dois direitos fundamentais, sejam o direito à saúde e o direito à segurança. Por isso é que a autonomia dos profissionais médicos deve ser relativa e não absoluta, assim como também o deve ser o direito à saúde, pois admite restrições.
O termo pejorativo empregado para tratar do grande número de processos sobre Saúde Pública ou Privada, a “Judicialização da Saúde”, ao nosso ver está na maioria das vezes relacionada a um meio de assegurar um serviço que não se embasa na garantia de direitos constitucionais, legais ou contratuais, seja pela dúvida da prescrição, da real necessidade ou da fragilidade, o que leva o Poder Judiciário à concluir pela inquestionabilidade da prescrição, especialmente por caracterizar na maioria das vezes uma situação de urgência/emergência, o que, em princípio, colocaria a vida em risco.
Assim é que na “Judicialização da Saúde” se tem levado ao Poder Judiciários casos de cobertura contratual baseado unicamente na prescrição médica (autonomia do médico), levando à falsa impressão, obviamente mais atraente, facilmente compreensível e confortável para os leigos e ditos hipossuficientes, de serem as Operadoras e Seguradoras de Planos de Saúde as vilãs da história, conforme recentemente publicado na Revista Veja, de 06 de agosto de 2014, sob o título: “Planos de Saúde Por que somos tão Maltratados por ele”.
Temas como estes devem ser lidos com olhar crítico, pois são sempre publicados com viés sensacionalista, colocando o paciente em situação de penúria, de hipossuficiência, inclusive porque usa o apelo da patologia que o acomete, e a Operadora de Plano como a grande vilã que desrespeita o contrato, as regras e atua no mercado de Saúde Suplementar somente com finalidade econômica lucrativa.
Engana-se, portanto, quem acredita veementemente nessas matérias sensacionalistas e de compreensão induzida, livre de qualquer suspeita, colocando a Operadora sempre na condição de cruel, descumpridora de seus contratos em grave desvantagem ao consumidor. Possivelmente existem conflitos e dificuldades em decorrência do grande número de beneficiários, complexidade legislativa, regulação confusa, Operadoras menos preparadas, mas não é permitido generalizar como fazem as mídias escritas e faladas, distorcendo todo o cenário da Saúde Suplementar no Brasil, que é altamente regulada pela ANS.
Ao contrário disso, as Operadoras sérias e legalistas cumprem a legislação específica, tal como é o caso das Operadora que tenho tido a honra de representar há anos, sem deixar de prestar uma medicina de qualidade, conforme preconizado pelo Código de Ética Médica, inclusive se atentando às prescrições divergentes, oferecendo a Junta Médica, arcando com os ônus desse modelo, regulado pela Agência Nacional e consagrado no meio médico, para a garantia da boa assistência ao paciente.
Vale destacar que o “Poder Judiciário tem adotado como premissa maior a inquestionabilidade da prescrição médica, que confere uma maior potência ao poder médico além do próprio Poder Judiciário e em detrimento da discricionariedade…” (nas sábias palavras de Maria Inez Pordeus Gadeha).
Trata-se, pois, de uma potência e um poder que devem ser relativizados, pois as divergências médicas entre profissionais assistentes que prescrevem e médicos auditores devem ser pautadas e debatidas sempre com estudos científicos, literatura médica renomada, registros dos materiais e medicamentos pelos órgãos competentes. As divergências, na prática, não são aleatórias como pode pensar o consumidor leigo, como se fosse um mero ato de economia. Longe disso, são todas fundamentadas em ciência médica, visando a segurança do paciente, da preservação à vida. Nas divergências apresentadas não há leigo de lado algum, é sempre um médico questionando prescrição de outro médico. Portanto, a ausência de liberação de procedimentos médicos não reconhecidos, de medicamentos não registrados no Brasil não são meios apenas de economia, mas são meios de prestar uma medicina de excelência, visando assegurar o direito à vida. Porque a autonomia existe só para o médico assistente e não para o médico auditor? Lembrando que a auditoria médica é uma especialidade reconhecida pela Conselho Federal de Medicina, donde também deve ser respeitada a sua autonomia de questionar as prescrições inadequadas, sem base científica.
Não são segredos à classe de advogados que atua na matéria, nem tampouco aos Magistrados e Ministério Público, as discussões sobre as indicações médicas, os conflitos de interesses, a instauração de CPI de materiais e medicamentos de altos custos; mais uma razão para a relativização da autonomia da prescrição e a importância da atuação do médico auditor.
Nesse sentido o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em acertadíssima recomendação, fez publicar ainda em 12/07/2011 a Recomendação n.º 36, que Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, com vistas a assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde Suplementar.
Já em 2011 o Conselho Nacional de Justiça Resolveu:
I – Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Regionais Federais que:
a) celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico, sem ônus para os Tribunais, composto por médicos e farmacêuticos, indicados pelos Comitês Executivos Estaduais, para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes, observadas as peculiaridades regionais;
b) facultem às operadoras interessadas o cadastramento de endereços para correspondência eletrônica junto às Comarcas, Seções e Subseções Judiciárias, com vistas a facilitar a comunicação imediata com os magistrados, e, assim, fortalecer a mediação e possibilitar a autorização do procedimento pretendido ou a solução amigável da lide, independentemente do curso legal e regular do processo;
c) orientem os magistrados vinculados, por meio de suas corregedorias, a fim de que oficiem, quando cabível e possível, à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ao Conselho Federal de Medicina (CFM), ao Conselho Federal de Odontologia (CFO), para se manifestarem acerca da matéria debatida dentro das atribuições de cada órgão, específica e respectivamente sobre obrigações regulamentares das operadoras, medicamentos, materiais, órteses, próteses e tratamentos experimentais.”.
O tema é extenso e o presente espaço me permite apenas breves apontamentos para reflexões. Contudo, já encerrando, vale comentar superficialmente um caso concreto e recente em que demandamos numa ação, onde uma das Operadoras que assessoro figurou no pólo passivo de uma ação que tramita numa das Varas Cíveis da Comarca de São Paulo, cuja tutela antecipada garantiu a disponibilização de medicamentos importados, sem registro na ANVISA e com custo inicial de R$ 475.000,00. Nas pesquisas para a defesa constatamos ser o médico assistente o pesquisador do medicamento, com elevadíssimo interesse na circulação do medicamento no Brasil, e que os exames do paciente não apresentavam a patologia mencionada. Os efeitos colaterais das drogas prescritas eram gravíssimos, e seus supostos benefícios careciam de estudo científico reconhecido. Pelo ora exposto, julgo importante refletir até que ponto as Operadoras estão preocupadas exclusivamente com economia e lucratividade, ou se colocam ênfase na preservação da vida dos seus consumidores e na prestação da melhor assistência.
Por muitas vezes já ouvi dos nossos respeitosos magistrados que a vida prefere a qualquer contrato! Se eu estivesse na condição de julgadora certamente utilizaria a mesma premissa, e é por mais essa razão que a importância de comissões médicas e a ciência médica no julgamento de tais materiais devem estar presentes desde o início.
O tempo urge e a voz de médicos especialistas e auditores apresentando manifestações antes das concessões das liminares podem ajudar o Poder Judiciário a garantir os direitos fundamentais à vida e à segurança, sem, contudo, deixar de assegurar o direito à Saúde, com a medicina adequada.
Elessandra Marques Bertolucci
Advogada do Escritório Bertolucci & Ramos Gonçalves Advogados Associados – São Paulo, responsável pela área de Saúde Suplementar, Direito Regulatório e Direito Cooperativo.