Dívida de R$ 40 bilhões oculta nos balanços expõe falhas na governança e na fiscalização da varejista, que tem entre seus principais donos Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil e referência em gestão.
Quem cometeu a fraude contábil de R$ 40 bilhões na Americanas? Sem uma resposta contundente a essa questão, o capitalismo e o sistema judicial brasileiros terão motivos para se preocupar — e se apequenar. Na lista de potenciais causadoras do desastre, ou do crime, a depender das conclusões, é bom que os nomes de seus três donos efetivos abram a fila. Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto da Veiga Sicupira. Além deles, há executivos muito bem remunerados (média anual de R$ 8,5 milhões entre salários e bônus em 2021) e que cometeram ‘deslize’ de estagiário ao analisar o Excel contábil. Junte-se ainda a PricewaterhouseCoopers (PwC), uma das Big Four do mundo das consultorias globais, que cuidava da validação dos números para o público externo. Por fim, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que tem o papel de fiscalizar tudo isso em nome do mercado de capitais. Pelo lado das vítimas estarão milhares de acionistas de todos os tamanhos, cotistas de fundos que compravam papéis da empresa e os credores.
O castelo de cartas começou a desmoronar na quarta-feira (11). Naquela noite, o CEO da Americanas, Sergio Rial, pediu demissão após dez dias no cargo depois de divulgar fato relevante ao mercado anunciando “inconsistências em lançamentos contábeis” de R$ 20 bilhões. Na quinta-feira (12), as ações da empresa começaram a derreter. Foram 84% de perdas em uma semana. Na sexta-feira (13), os grandes bancos credores da varejista já estavam reunidos com Rial para discutir a gravidade da situação. Segundo a Bloomberg, o ex-CEO teria dito que os principais acionistas estavam dispostos a aportar R$ 6 bilhões na empresa, mas os banqueiros estariam exigindo R$ 10 bilhões. Puro blefe da varejista. Enquanto esse pôquer rolava, a Americanas jogava pelas costas e conseguia na Justiça do Rio de Janeiro uma liminar blindando o dinheiro em caixa para que não ficasse na mão dos credores.
O BTG, uma das vítimas da liminar, ficou possesso e entrou com petição no sábado (14) para bloquear R$ 1,2 bilhão de uma conta da varejista no banco. O pedido foi inicialmente negado (somente na quarta-feira, 18, a decisão foi revertida). O banco de André Esteves apontou o dedo para o trio da 3G de forma inequívoca. “É o fraudador [Americanas] pedindo à Justiça proteção contra a sua própria fraude”. E colocou Lemann-Telles-Sicupira entre os suspeitos. “Os três homens mais ricos do Brasil, ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial do bem, são pegos com a mão no caixa.” Bilionário acusando bilionário de colocar a “mão na caixa” é encrenca rara e séria. O trio citado na petição e incensado no mundo dos negócios ocupa as três primeiras posições no ranking Forbes de bilionários brasileiros — Lemann é o primeiro, com US$ 15,7 bilhões. Telles (US$ 10,6 bilhões) é o segundo. Sicupira (US$ 8,6 bilhões), o terceiro.
Para o BTG, houve crime e ele foi premeditado. “Tudo indica que todo esse ardil já está sendo planejado e operado há muito tempo. Ao apagar das luzes de 2021, a 3G Capital simplesmente abre mão do controle da companhia, curiosamente sem qualquer prêmio, criando a figura de ‘acionistas de referência’ para seguir controlando suas decisões por trás dos panos, sem a exposição ordinária de um controlador comum.” Refere-se a uma manobra de transferência acionária ocorrida em novembro de 2021. “O escândalo da Americanas não se trata de um rombo recente, mas construído ano a ano há mais de década, um plano para lucrar às custas de todo o mercado financeiro e sair ileso, com bens blindados no exterior”, afirmou em sua petição à Justiça do Rio. Para engrossar a desconfiança, veio à tona que no primeiro semestre de 2022, diretores da varejista venderam mais de R$ 210 milhões em ações da empresa. A suspeita é de que sabiam da fraude financeira e se anteciparam a inevitáveis tombos nos papéis.
A queda veio e se estendeu ao valor de mercado das maiores instituições bancárias do País. Um grupo de grandes bancos perdeu R$ 36,8 bilhões em valor de mercado até a terça-feira (17), segundo levantamento da TradMap. CEO do Banco Safra, Silvio de Carvalho afirmou com exclusividade à DINHERO: “Por conservadorismo, já havíamos provisionado metade da exposição de R$ 2,4 bilhões junto à Americanas no exercício de 2022”. Segundo ele, o Safra faz um resultado robusto, com R$ 2,2 bilhões de lucro líquido no ano passado. “Temos 180 anos de história. Nossa cultura é ser sempre conservador.” Carvalho afirmou também que em novembro foi aprovado um aumento de capital de R$ 7,4 bilhões para expandir os negócios. Com isso, o patrimônio líquido atingirá mais de R$ 25 bilhões. Mas nem todos têm o perfil do Safra.
No estudo da TradeMap, o Santander derreteu R$ 8,7 bilhões. Itaú, R$ 7,4 bilhões. Bradesco e Banco do Brasil também foram atingidos. Mas foi justamente o BTG Pactual o mais afetado, com queda de R$ 12,7 bilhões.
E RIAL? O CEO de dez dias afirma que nada sabia. Ex-executivo principal do Santander, em agosto do ano passado Rial foi anunciado que seria o número 1 da Americanas a partir deste janeiro. Assumiu o cargo dia 2, saiu dia 11. Em sua narrativa, chegou, encontrou o problema, que se arrastava por anos, e pediu demissão. Aí começam as desconfianças de credores, de acionistas e do mercado. Rial é executivo calejado e de primeira linha — sua remuneração anual pelo Santander, em 2021 (a de 2022 ainda não foi tornada pública), chegou a R$ 59 milhões. Ele tomaria conhecimento da real situação de seu novo empregador apenas ao assumir o posto? Essa é uma pergunta que deixa o ex-CEO na berlinda. “Eu jamais transigiria com a minha biografia”, afirmou na terça-feira (17) em sua conta no LinkedIn.
Qual lado ele ocupará da história ainda não se sabe, mas o esquema foi desmoronado a partir dele. A inconsistência contábil bilionária está no risco sacado. É uma operação financeira, também chamada de “forfait”, oferecida pelos bancos a empresas que querem antecipar recebíveis. De acordo com especialistas ouvidos pela DINHEIRO, é provável que as compras feitas pela Americanas fossem pagas pelos bancos, mas entravam no balanço como pendência junto a fornecedores — ou nem entravam. Ou seja, o que era dívida não aparecia como dívida. A inconsistência contábil revelada inicialmente era de R$ 20 bilhões. Acrescido da dívida bruta da empresa, de outros quase R$ 20 bilhões, isso pode acarretar no vencimento antecipado e imediato de um passivo de R$ 40 bilhões. Para Marcus Vinicius Ramos Gonçalves, sócio da BRG Advogados e professor de Compliance e ESG da pós-graduação da FGV, é certo que a governança falhou. “O que está claro é que, de forma intencional ou não, a empresa não explicou de forma cristalina a maneira que realizava tais operações [de risco sacado].”
FUTURO A Americanas pediu na tarde de quinta-feira (19) recuperação judicial para evitar a falência, como ocorreu com o Mappin no final da década de 1990. Há alguns fatores que ajudam a Americanas a ter futuro diferente da finada varejista, segundo analistas. Um deles é o potencial de faturamento da companhia, acima de R$ 30 bilhões anuais. Outro, os ativos que podem ser vendidos. A empresa é dona de marcas como Submarino, Shoptime, Hortifruti Natural da Terra, Puket e Imaginarium. Por ora, o Conselho de Administração da Americanas elegeu o diretor de RH, João Guerra Duarte Neto, para exercer interinamente a função de CEO. E Camille Loyo Faria foi anunciada como nova diretora financeira — ela atuou na recuperação judicial da Oi, de 2019 a 2021, período em que era CFO da telecom. Também contratou o banco Rothschild&Co para renegociar dívidas com credores.
Respingos serão inevitáveis a outros players varejistas? Provavelmente. Wagner de Moraes, CEO da A&S Partners, afirma que o episódio pode sinalizar uma fraude sem precedentes. “Erro desse tamanho é inaceitável, incompreensível e irresponsável”, afirmou. “Os balanços serão bem mais investigados pelos investidores e instituições financeiras, bem como o acesso ao crédito deverá ser bem mais limitado, o que é muito ruim para o setor.” Por todo esse enredo, somente uma investigação profunda e célere preservará a credibilidade de players sérios do mercado de capitais brasileiro e seu entorno fiscalizador. Para evitar novos estragos dessa proporção, em nome de todos os tipos de investidores. E entre os muitos mistérios a serem desvendados sobre as finanças da Americanas e de outras companhias, fica a certeza de que as aparências enganam. Jorge Paulo Lemann está em silêncio. E isso diz muita coisa.
A (não) entrevista de Sergio Rial
Na terça-feira (17), Sergio Rial usou seu LinkedIn para postar sua versão da hecatombe chamada Caso Americanas. Depois de 12 horas da postagem, ele já havia recebido quase 12 mil corações, likes e palminhas. Como o jornalismo profissional serve para fazer as perguntas necessárias, usamos o texto dele para encaixar nossas seis questões (em negrito).
AFIRMAÇÃO 1
SERGIO RIAL – “Tenho feito várias reflexões sobre a minha rápida passagem pela liderança das Americanas, algumas das quais compartilho com vocês. A liderança das Americanas projetava diversos desafios inerentes a uma empresa de varejo chegando aos seus 100 anos. Na pauta de objetivos estava um projeto de crescimento onde consumidor, tecnologia, marketing, entre outras competências se entrelaçavam. Foi esse o meu propósito, a minha motivação ao aceitar a posição que os acionistas me confiaram: agregar minha experiência profissional e reoxigenar o legado em prol do desenvolvimento da companhia”.
NOSSA QUESTÃO: O senhor aceitou tamanho desafio desconhecendo informações básicas da empresa?
AFIRMAÇÃO 2
“Nesses breves nove dias como presidente, os desafios e os ensinamentos, contudo, foram outros, mas extremamente importantes. Coube-me, como executivo-líder, primeiro entrevistar executivos remanescentes, questionar e entender quaisquer preocupações e novas perspectivas. Nessas conversas, informações e dúvidas foram compartilhadas e com o natural aprofundamento para entendê-las e dar-lhes direcionamentos conjuntamente com o novo CFO, Andre Covre, chegamos ao quadro do fato relevante com transparência e fidedignidade! Quaisquer especulações ou teorias distintas disso são leviandades. Eu jamais transigiria com a minha biografia.”
NOSSA QUESTÃO: Independentemente de sua biografia, esses executivos disseram o quê? Que sabiam de uma maquiagem de R$ 40 bilhões?
AFIRMAÇÃO 3
“Portanto, com a conclusão do diagnóstico inicial, surgiu a necessidade premente de correção de rota. E essa correção partiu da transparência e do apoio incondicional que recebi do CA (Conselho de Administração) e dos acionistas de referência.”
NOSSA QUESTÃO: Acionista de referência significa, ao senhor, exatamente o quê? Alguém que pode tudo?
AFIRMAÇÃO 4
“Aqui, minha segunda reflexão: ser líder não é ser corajoso, mas ser responsável e ético; não é ser herói ou heroína, mas ter a resiliência para defender a verdade e fazer o que é certo.”
NOSSA QUESTÃO: O senhor já sabia que a empresa e os tais acionistas de referência estavam entrando na Justiça para bloquear que credores (um deles seu ex-empregador) recebessem seus créditos?
AFIRMAÇÃO 5
“Quanto à minha saída, ela decorre do entendimento da necessidade de abrir espaço para que a empresa pudesse se reestruturar de um ponto de partida totalmente distinto do que eu esperava encontrar. É preciso saber o momento de se posicionar dentro de um novo contexto que se apresenta. Foi o que fiz, sem me descomprometer em ajudar no que estivesse ao meu alcance. Essa é a minha terceira
reflexão.”
NOSSA QUESTÃO: O senhor chamaria de ético, justo ou fraudulento o que ocorreu e motivou sua saída?
AFIRMAÇÃO 6
“Vou, portanto, neste momento, continuar a contribuir com minhas capacitações, experiência, seriedade e transparência, seguindo sempre as premissas que nortearam toda minha trajetória profissional e pessoal. São lições profundas de governança, autenticidade e coerência que esses nove dias escreveram na minha história.”
NOSSA QUESTÃO: Acionistas majoritários, executivos movidos por bônus, agências de rating que classificaram debêntures sem profundidade, CVM e a consultoria (PwC) que aprovou a lambança por anos. Qual o porcentual de culpa de cada um deles nessa história?
Tombo impacta mais de 1 mil fundos
Além das perdas da empresa e dos bancos na Bolsa, o tombo de Americanas afetou 1.085 fundos de investimentos que possuíam papéis da rede de varejo em suas carteiras. Segundo levantamento da Economatica solicitado pela DINHEIRO, o impacto alcançou 616 fundos de renda variável (ações) e 469 de renda fixa (debêntures). Sem os outliers (máxima e mínima), as perdas oscilaram entre -0,16% e -10,96% nos fundos de ações apenas nas primeiras 24 horas após o escândalo subir à superfície. Segundo Felipe Pontes, COO da Economatica, o impacto dependeu do tamanho da exposição de cada fundo junto a Americanas. “Entre os fundos de ações, o Moat Capital FIA foi um dos que mais tiveram impacto”, afirmou. Oito fundos da Moat Capital registravam fatias entre 9,61% e 13,49% em ações da varejista.
Entre os fundos de renda fixa, o que mais sofreu foi o Western Asset Prev Crédito Privado, pois também tinha uma concentração mais alta nas debêntures da Americanas. “Um caso como o das Americanas não estava no radar e pegou o mercado de surpresa, já que muitos podem classificar como fraude”, disse Pontes. Na renda fixa, a maior perda diária (-4,49%) apareceu no Verde Am Carry Master FI Multimercado Crédito Privado, da Verde Asset, para um público acostumado com o risco das debêntures. De acordo com a Verde, o Verde Am Carry Master FI Multimercado Crédito Privado é um fundo veículo, utilizado apenas para operacionalizar os investimentos em crédito privado da casa. Ele representa 0,15% nos fundos que seguem a estratégia de Multimercado e 0,30% nos fundos que seguem a estratégia de Multimercado Previdência.
Mas no varejo pessoa física, o caso mais polêmico foi do FI RF Nu Reserva Imediata Master, do Nubank, que oscilou negativamente (-0,51%) e assustou os cotistas que estavam acostumados com variações positivas diárias. Para o analista da Spiti Guilherme Cadonhotto, o caso do Reserva Imediata gerou polêmica por causa do nome do fundo. “Passa a mensagem de que ele é recomendado para reserva de emergência, que deve passar longe da exposição em debêntures, que são de risco bem maior do que ativos como títulos públicos pós-fixados e CDBs de grandes bancos, ambos com liquidez diária”, disse. A Nu Asset Management, gestora de fundos de investimentos do Nubank, afirmou por nota que o Reserva Imediata possui estratégia desenhada para ser uma opção de baixo risco e alta liquidez, e busca performance acima do CDI ao longo do tempo. Mas mostra outra ponta desse iceberg, as agências de classificação de risco. “A parcela de investimento em debêntures da Americanas, historicamente avaliada como Triple A por diferentes casas de rating, já foi revista pela Nu Asset Management.”